Coringa

É difícil
um filme agradar tanto a crítica quanto o público geral como Coringa faz. Uma
obra que consegue ser cult e popular ao mesmo, mostrando que ainda pode sim existir
cinema de qualidade acessível a todos. Não tenho dúvidas que estamos diante de
um clássico contemporâneo, merecedor de entrar para a história do cinema como
um orgulho da produção audiovisual.
Arthur Fleck
é um palhaço desprestigiado, a humilhação sofrida por conta de seu trabalho
considerado medíocre aflora um comportamento insano e doentio, que evolui até
se tornar no conhecido criminoso Coringa.

Esqueça
tudo o que você acha que sabe o Coringa ou filmes do universo de heróis. O que
vemos aqui é essencialmente diferente do que é encontrado no gênero, não se
trata de uma história de origem ou a apresentação de um vilão, mas sim de algo
muito mais introspectivo e perturbador, a formação da mente de um louco. O
filme também poderia funcionar muitíssimo bem em um contexto totalmente
diferente, não é o nome Coringa ou o sucesso do personagem que montam a obra,
na verdade é justamente o contrário, é a originalidade e o realismo em que a
loucura e a insanidade se desenvolvem. As referências à já conhecida história
do Coringa são poucas, e mesmo sem elas ou se fosse personagem novo, o filme seria
digno dos oito minutos de aplausos que recebeu no Festival de Cinema de Veneza.
Quem diria
que o diretor Todd Phillips, responsável por Se Beber Não Case, entregaria um
resultado tão assustadoramente impecável como esse. Sua direção é precisa,
cuidadosa e altamente planejada, com técnicas de filmagem requintadas como contra-plongée e travelling. Os enquadramentos são inventivos e mudam constantemente,
há planos com aproximações diferentes durante a mesma cena, em um momento
podemos ver o cenário inteiro e o personagem é apenas parte dele e após um
corte temos um close bem fechado sobre o rosto do Coringa. Há constante
transição entre esses planos e alguns ângulos são estranhos, como do topo de
uma escada, atrás de um objeto ou entre a fumaça do cigarro. Isso tudo cria uma
confusão estética proposital, para que o espectador se sinta tão inquieto
quanto o Coringa ao longo da evolução de sua loucura.

Tecnicamente,
o filme é arrasador. O ambiente precisava ser desmotivador, um espaço em que o
Coringa não pudesse encontrar salvação e se perder em sua insanidade. A
fotografia é fundamental nesse ponto, pálida e fria, sob tons azulados ou
esverdeados para representar a realidade sem vida e desoladora de Gotham. A
trilha sonora também é irretocável, estrondosa e barulhenta no auge da emoção,
é arrepiante.
Mas mesmo
com tantas virtudes, o que mais chama a atenção é o desempenho do Joaquin
Phoenix como Coringa. Vários atores como Jack Nicholson e Heath Ledger já
interpretaram o personagem genialmente (esqueçam a versão afetada do Jared
Leto) e Joaquin Phoenix acaba de entrar para essa lista. Sinceramente, o que
ele faz aqui é uma das performances masculinas mais impressionantes que já vi
na vida. Não há como comparar as
atuações pois tratam-se de abordagens diferentes, Heath Ledger por exemplo
consagrou o Coringa como um gênio do crime perturbado, já Phoenix nos trás um
Coringa a beira de um colapso mental. O olhar penetrante e assustador, os
trejeitos exagerados e desequilibrados, o sorriso cruel e provocante, as
gargalhadas escandalosas e arrepiantes, todas essas são características que
moldam a personalidade inquietante do palhaço. O filme inteiro dependia da
atuação de Joaquin, consigo imaginar uma preparação exaustiva por meses,
transformações inclusive físicas do ator, e acho quase impossível imaginar um
desempenho melhor do que ele nos entrega. Se não ganhar um oscar em 2020, não
existe justiça nesse mundo.

Um filme
para ser lembrado por gerações, uma atuação para ser cultuada por décadas. Coringa
é a arte do cinema na sua forma mais verdadeira e refinada.
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